livro do bebê

tenho uma amiga que, quando trabalhavamos juntas, a cada vez que descobríamos alguma coisa dizia “Muito bem! Já pode colocar no Livro do Bebê.” era uma referência àquele livro que toda mãe ganhava quando engravidava e ia marcando as datas importantes de desenvolvimento do pequeno ser humaninho como primeiro dente, primeiros passos, primeiras palavras..
uma verdadeira coletânea de aprendizados.

lembrei dela quando em Janeiro de 2020 decidi criar o meu Projeto Livro do Bebê. a idéia era aprender uma coisa nova por mês, algo que na essência não tivesse nenhuma ligação com minha carreira e trabalho já que invariavelmente era onde eu há anos colocava meus esforços.
e foi assim, sentada na canga aproveitando alguns dias de férias na praia, que fui jogando no bloco de notas do celular uma mistura de desejos antigos e novos e a lista foi sendo criada:
– degustação de vinho
– dança do ventre
– pão
– perna de pau
– canto

alerta de mensagem: uma amiga a 444km de distância indicando um curso “Recebi isso e lembrei de você!”, ela dizia. poucas vezes na vida eu fui tão aplicada em um dever de casa, e foi assim que eu determinei a primeira aula do ano e as idéias viraram fatos.
– Janeiro – dança afro
– Fevereiro – tamborim (Carnaval tava ali né?)
– Março – leitura de tarot

e bom, cá estamos. Dezembro de 2020, uma lista de planos não realizados, uma lista de nomes que tiveram seus planos interrompidos. dizer que este ano foi um ano de aprendizados é chover no molhado e minimizar 180 mil estórias, até agora.
mas talvez na minha lista estivesse faltando “aprender a aprender”.
aprender a respeitar meus medos, minhas lágrimas e meus sorrisos mesmo em meio ao caos.
aprender a respeitar o tempo do outro, as escolhas do outro e cada uma de suas palavras e seus silêncios.

aprender o olhar o agora, já que como dizia o poeta, “Breve é o dia. Breve é a vida.”

querida.

gaiola

“Um pássaro numa gaiola durante a primavera sabe muito bem que há algo a fazer, mas não pode fazer nada. O que eu será? Ele não se lembra muito bem. Então ele se agita no espaço pequeno e diz a si mesmo ‘tenho uma vaga lembrança’.
Os outros pássaros fazem seus ninhos, tem seus filhotes e saem em revoada. Então ele bate com a cabeça na grade e a gaiola continua ali.
‘O s
enhor é um vagabundo Senhor Van Gogh’ diz um pássaro que passa.
N
o entanto eu não morro, eu vivo.
Nada exteriormente revela o que se passa dentro de mim. Às vezes eu estou mais ou menos feliz entre minhas grades e os raios de sol lá fora.
E
stou preso.
Estou preso – e sou a minha gaiola.”

este é um trecho de uma peça, Van Gogh – A Sombra do Invisível monólogo onde João Paulo Lorenzon interpreta as angústias lúcidas das cartas que Vicent Van Gogh escreveu para o irmão Théo. o porão do Espaço Viga estava escuro mas ainda assim tentei rabiscar algumas palavras na pequena caderneta que vive na minha bolsa. quase inútil.

dias depois tive a supresa e o prazer de ganhar a voz do João declamando o trecho no meu WhatsApp.

faço parte da turma Tratadinha Porém Rebelde que já fez muita terapia e se deu alta. eu sigo me analisando diariamente e presa no dilema de ligar para a analista e ter preguiça de contar tudo que aconteceu nesse meio tempo e chegar à conclusão que não aprendi nada desde então. enquanto isso, abro mais uma garrafa de vinho e destravo todos os pinos da cabeça pensando o quanto somos presos-libertos ou libertinos-presos na máquina da vida. e não falo de ligar o foda-se e decidir virar a noite dançando, transando ou maratonando aquela série sem ligar pra reunião no dia seguinte. essa parte tá fácil.

o quanto você está preso nas suas próprias crenças, verdades, angústias?

o quanto você faz uso do seu livre arbítrio escondendo sob o verbo a sua insegurança, seu medo e a própria vergonha?

acreditamos fazer parte de um mundo sem fronteiras e sem limites, mas seguimos nos movendo dentro de um espaço conhecido, dentro de uma fachada confortável e segura da qual somos prisioneiros (muitas vezes) sem saber. careta ou não você é apenas uma aparência dissimulada da sua verdade. uma vez ouvi um guru me dizer que um dia aprenderíamos que as chaves que trancam as portas das nossas gaiolas estão com a gente o tempo todo. ou talvez ainda ficássemos espantados ao verificar que a porta da gaiola está destrancada – mais! ficaríamos mesmo estupefados ao percebermos que a gaiola que nos prende sequer tem grades.

o quanto nos ancoramos dentro dos nossos próprios clichês por medo de formular novas frases e novos pensamentos?

não há dúvidas que somos moldados por cada passo da nossa história e ela é contada por escolhas, frases, decisões e sorrisos entregues ou não. e há de se ter orgulho de ter chegado até aqui, a pergunta é: quanto tem de humildade dentro de você para chegar em outro lugar que não a continuação deste? e perceba que a pergunta não é sobre coragem, é sobre orgulho – ou sobre o deixar de lado para pisar em novas pedras. meu clichê tem sido dar de cara com situações repetidas, perceber gritar “aha! entendi.” e ir dormir. e acordar de mão dada com ela porque o bicho-papão não saiu de debaixo da cama e a levou embora. essa função vai ser minha, igual tirar a barata morta no canto do banheiro porque ela não vai se desmaterializar, infelizmente. o jeito? tomar uma dose despretensiosa de atrevimento e apontar o pé para o lado que pode até parecer o topo de um abismo mas é apenas livre de certezas.

porque no fim o pássaro só quer voar. às vezes nem pra tão longe assim.

Mais Limites (ou Auto Amor) Por Favor

foi no meio de uma terça-feira à noite que eu decidi: no sábado eu não vou entrar no Instagram.
precisava me blindar. aliás, eu devia mesmo não entrar nem no sábado nem no domingo.
pronto. tava decidido.
só faltava chegar o sábado e eu não cair em tentação, livrar-me do mal. amém.
e assim foi.

uma angústia abrir o celular pra responder uma mensagem, passar o olho naquele ícone e não clicar.
esperar o elevador olhando pra porta fechada do elevador.
esperar o sinal de trânsito olhando pro visor do rádio.
esperar as pessoas no restaurante olhando pro cardápio, pra rua, pro pé, pro céu.
que martírio Senhor!

esperar.

esperar o tempo. passar o tempo. olhando pra frente. olhando pra gente.
e foi então que algo bem inusitado aconteceu: as outras pessoas me olhavam, e falavam comigo, e enquanto falavam elas olhavam nos seus olhos e eu ficava perturbada. “esse ser humano não pisca?”
ou era eu que tinha desacostumado a olhar?
e veio o almoço, e a sobremesa, e café e a conta e um convite pra uma festinha, ninguém conhecido, porque não? novos amigos, novos assuntos, novos olhares e novas vozes.

e foi então que veio o segundo momento inusitado do dia: de repente ela se percebeu leve, se percebeu livre, percebeu que sem aquele rolar de fotos o tempo tinha outro tempo e a angústia passava ao largo, afinal, dizem mesmo que o que os olhos não veem o coração não sente.

e de noite me percebi dirigindo pra casa com um sorriso no rosto que ficou lá estampado enquanto dormia e não saiu no dia seguinte, e nem no outro, e nem no outro, e você não vai acreditar! passou uma semana inteirinha e eu não entrei em nenhuma rede social sequer.

nada. nadica.

e sabe o que aconteceu?

nada. nadica.

ser humano é tão autocentrado que fica achando que só porque fez um esforço danado pra tomar um decisão, acredita que depois disso um tapete vermelho vai se abrir, uma luz dourada divina vai passar a iluminar seu caminho e o mundo vai se curvar aos seus pés. sinto te dizer. vai acontecer isso não.
daí de onde você tá olhando tá tudo igual.
mas se você virar a lente e olhar pra dentro talvez veja alguma coisa deslocada. e aí é que está a beleza, nada muda, mas tudo mudou.

a onda da vez agora é falar sobre o mal que as redes sociais exercem sobre a gente. detox digital.
a mudança do sentimento de FOMO (Fear of Missing Out) pra JOMO (Joy of Missing).
todo mundo tem opinião sobre isso – e tá todo mundo publicando nas tais redes sociais as suas opiniões sobre elas próprias. e se você me der uma taça de vinho eu publico também.
mas daí que de verdade a gente fala e pouco pratica, a  não ser que a bateria do celular acabe ou algum motivo real aconteça. no meu caso aconteceu.

e eu sobrevivi.

e finalmente entendi uma frase que ouvi em um podcast (afinal existem os dias de glória da tecnologia sim) que dizia que você nunca vai conhecer o seu potencial até que você o coloque em teste.

existe amor no rock’n’roll

a lembrança do primeiro show que eu fui na vida foi do Chico Buarque – acho que no Maracanãzinho mas não tenho tanta certeza assim. lembro de estar deitada na arquibancada, dormindo, cabeça no colo da minha mãe e ela me acordar no momento em que ele entrou no palco. 

Chico foi (e ainda é) meu muso referência da vida, e habitué da vitrola de casa junto com Caetano, Gal, Bethânia e Gil. Raul Seixas. 

influência da baianidade do lado materno da família?

influência da oposição política da época?

entre finais de semana e noites de zum zum zum dos encontros em casa cresci em meio às conversas sobre passeatas, Diretas Já sem saber que estava me preparando para ser uma futura Cara-Pintada. aprendi sobre direitos e delações. aprendi sobre tortura ao mesmo tempo em que aprendi sobre compaixão.

já durante a semana meu tempo era dividido entre a escola pública-federal e o clube nas aulas de natação, jazz ou no chão da biblioteca entre livros e revistinhas aproveitados embaixo do ar condicionado. 

quando estava em casa a trilha sonora era outra, comandada pela ajudante da vez. 

quando bem pequena, Luzia, negra do sorriso largo, da ala das baianas do Salgueiro me apresentou o morro e o seu samba.  

maior um pouco me apresentaram a música romântica, brega. lembro da capa de um LP de Amado Batista e a voz que acompanhava cada sofrida canção. 

dois mundos. 

uma noite de sábado de maio de 2018 e eu vou ao cinema com minha mãe e meus tios. na tela, Paraiso Perdido. 

um filme-homenagem de Lais Bodanski a Odair José. 

com todo esse histórico é de se imaginar que me tornei mais frequentadora de festival de cinema do que das sessões blockbuster e filmes nacionais não costumam ficar de fora do meu cardápio. 

não esperava nada e saí de lá sem conseguir explicar o que aconteceu. 

filme forte, personagens fortes, cenas fortes… cores, lugares. tudo parecia tão antigo e tão atual, tudo me parecia familiar mas vindo de uma dor tão distante.

minha primeira reação foi procurar a trilha sonora do filme no Spotify. bingo! repeat. repeat. repeat.

ouço no fone, na caixa de som, no volume mais alto do carro, decoro cada letra e canto junto ao mesmo tempo que o peito aperta e a lágrima escorre. 

dedico cada música a um personagem da minha vida. 

me imagino em um palco cantando para cada um. re-significo pelo menos 100 palavras da língua portuguesa. e então percebo que lá naquele sobrevivente cinema de rua de Ipanema eu tive uma delicada aula sobre o amor.