“Um pássaro numa gaiola durante a primavera sabe muito bem que há algo a fazer, mas não pode fazer nada. O que eu será? Ele não se lembra muito bem. Então ele se agita no espaço pequeno e diz a si mesmo ‘tenho uma vaga lembrança’.
Os outros pássaros fazem seus ninhos, tem seus filhotes e saem em revoada. Então ele bate com a cabeça na grade e a gaiola continua ali.
‘O senhor é um vagabundo Senhor Van Gogh’ diz um pássaro que passa.
No entanto eu não morro, eu vivo.
Nada exteriormente revela o que se passa dentro de mim. Às vezes eu estou mais ou menos feliz entre minhas grades e os raios de sol lá fora.
Estou preso.
Estou preso – e sou a minha gaiola.”
este é um trecho de uma peça, Van Gogh – A Sombra do Invisível monólogo onde João Paulo Lorenzon interpreta as angústias lúcidas das cartas que Vicent Van Gogh escreveu para o irmão Théo. o porão do Espaço Viga estava escuro mas ainda assim tentei rabiscar algumas palavras na pequena caderneta que vive na minha bolsa. quase inútil.
dias depois tive a supresa e o prazer de ganhar a voz do João declamando o trecho no meu WhatsApp.
faço parte da turma Tratadinha Porém Rebelde que já fez muita terapia e se deu alta. eu sigo me analisando diariamente e presa no dilema de ligar para a analista e ter preguiça de contar tudo que aconteceu nesse meio tempo e chegar à conclusão que não aprendi nada desde então. enquanto isso, abro mais uma garrafa de vinho e destravo todos os pinos da cabeça pensando o quanto somos presos-libertos ou libertinos-presos na máquina da vida. e não falo de ligar o foda-se e decidir virar a noite dançando, transando ou maratonando aquela série sem ligar pra reunião no dia seguinte. essa parte tá fácil.
o quanto você está preso nas suas próprias crenças, verdades, angústias?
o quanto você faz uso do seu livre arbítrio escondendo sob o verbo a sua insegurança, seu medo e a própria vergonha?
acreditamos fazer parte de um mundo sem fronteiras e sem limites, mas seguimos nos movendo dentro de um espaço conhecido, dentro de uma fachada confortável e segura da qual somos prisioneiros (muitas vezes) sem saber. careta ou não você é apenas uma aparência dissimulada da sua verdade. uma vez ouvi um guru me dizer que um dia aprenderíamos que as chaves que trancam as portas das nossas gaiolas estão com a gente o tempo todo. ou talvez ainda ficássemos espantados ao verificar que a porta da gaiola está destrancada – mais! ficaríamos mesmo estupefados ao percebermos que a gaiola que nos prende sequer tem grades.
o quanto nos ancoramos dentro dos nossos próprios clichês por medo de formular novas frases e novos pensamentos?
não há dúvidas que somos moldados por cada passo da nossa história e ela é contada por escolhas, frases, decisões e sorrisos entregues ou não. e há de se ter orgulho de ter chegado até aqui, a pergunta é: quanto tem de humildade dentro de você para chegar em outro lugar que não a continuação deste? e perceba que a pergunta não é sobre coragem, é sobre orgulho – ou sobre o deixar de lado para pisar em novas pedras. meu clichê tem sido dar de cara com situações repetidas, perceber gritar “aha! entendi.” e ir dormir. e acordar de mão dada com ela porque o bicho-papão não saiu de debaixo da cama e a levou embora. essa função vai ser minha, igual tirar a barata morta no canto do banheiro porque ela não vai se desmaterializar, infelizmente. o jeito? tomar uma dose despretensiosa de atrevimento e apontar o pé para o lado que pode até parecer o topo de um abismo mas é apenas livre de certezas.
porque no fim o pássaro só quer voar. às vezes nem pra tão longe assim.