livro do bebê

tenho uma amiga que, quando trabalhavamos juntas, a cada vez que descobríamos alguma coisa dizia “Muito bem! Já pode colocar no Livro do Bebê.” era uma referência àquele livro que toda mãe ganhava quando engravidava e ia marcando as datas importantes de desenvolvimento do pequeno ser humaninho como primeiro dente, primeiros passos, primeiras palavras..
uma verdadeira coletânea de aprendizados.

lembrei dela quando em Janeiro de 2020 decidi criar o meu Projeto Livro do Bebê. a idéia era aprender uma coisa nova por mês, algo que na essência não tivesse nenhuma ligação com minha carreira e trabalho já que invariavelmente era onde eu há anos colocava meus esforços.
e foi assim, sentada na canga aproveitando alguns dias de férias na praia, que fui jogando no bloco de notas do celular uma mistura de desejos antigos e novos e a lista foi sendo criada:
– degustação de vinho
– dança do ventre
– pão
– perna de pau
– canto

alerta de mensagem: uma amiga a 444km de distância indicando um curso “Recebi isso e lembrei de você!”, ela dizia. poucas vezes na vida eu fui tão aplicada em um dever de casa, e foi assim que eu determinei a primeira aula do ano e as idéias viraram fatos.
– Janeiro – dança afro
– Fevereiro – tamborim (Carnaval tava ali né?)
– Março – leitura de tarot

e bom, cá estamos. Dezembro de 2020, uma lista de planos não realizados, uma lista de nomes que tiveram seus planos interrompidos. dizer que este ano foi um ano de aprendizados é chover no molhado e minimizar 180 mil estórias, até agora.
mas talvez na minha lista estivesse faltando “aprender a aprender”.
aprender a respeitar meus medos, minhas lágrimas e meus sorrisos mesmo em meio ao caos.
aprender a respeitar o tempo do outro, as escolhas do outro e cada uma de suas palavras e seus silêncios.

aprender o olhar o agora, já que como dizia o poeta, “Breve é o dia. Breve é a vida.”

querida.

gaiola

“Um pássaro numa gaiola durante a primavera sabe muito bem que há algo a fazer, mas não pode fazer nada. O que eu será? Ele não se lembra muito bem. Então ele se agita no espaço pequeno e diz a si mesmo ‘tenho uma vaga lembrança’.
Os outros pássaros fazem seus ninhos, tem seus filhotes e saem em revoada. Então ele bate com a cabeça na grade e a gaiola continua ali.
‘O s
enhor é um vagabundo Senhor Van Gogh’ diz um pássaro que passa.
N
o entanto eu não morro, eu vivo.
Nada exteriormente revela o que se passa dentro de mim. Às vezes eu estou mais ou menos feliz entre minhas grades e os raios de sol lá fora.
E
stou preso.
Estou preso – e sou a minha gaiola.”

este é um trecho de uma peça, Van Gogh – A Sombra do Invisível monólogo onde João Paulo Lorenzon interpreta as angústias lúcidas das cartas que Vicent Van Gogh escreveu para o irmão Théo. o porão do Espaço Viga estava escuro mas ainda assim tentei rabiscar algumas palavras na pequena caderneta que vive na minha bolsa. quase inútil.

dias depois tive a supresa e o prazer de ganhar a voz do João declamando o trecho no meu WhatsApp.

faço parte da turma Tratadinha Porém Rebelde que já fez muita terapia e se deu alta. eu sigo me analisando diariamente e presa no dilema de ligar para a analista e ter preguiça de contar tudo que aconteceu nesse meio tempo e chegar à conclusão que não aprendi nada desde então. enquanto isso, abro mais uma garrafa de vinho e destravo todos os pinos da cabeça pensando o quanto somos presos-libertos ou libertinos-presos na máquina da vida. e não falo de ligar o foda-se e decidir virar a noite dançando, transando ou maratonando aquela série sem ligar pra reunião no dia seguinte. essa parte tá fácil.

o quanto você está preso nas suas próprias crenças, verdades, angústias?

o quanto você faz uso do seu livre arbítrio escondendo sob o verbo a sua insegurança, seu medo e a própria vergonha?

acreditamos fazer parte de um mundo sem fronteiras e sem limites, mas seguimos nos movendo dentro de um espaço conhecido, dentro de uma fachada confortável e segura da qual somos prisioneiros (muitas vezes) sem saber. careta ou não você é apenas uma aparência dissimulada da sua verdade. uma vez ouvi um guru me dizer que um dia aprenderíamos que as chaves que trancam as portas das nossas gaiolas estão com a gente o tempo todo. ou talvez ainda ficássemos espantados ao verificar que a porta da gaiola está destrancada – mais! ficaríamos mesmo estupefados ao percebermos que a gaiola que nos prende sequer tem grades.

o quanto nos ancoramos dentro dos nossos próprios clichês por medo de formular novas frases e novos pensamentos?

não há dúvidas que somos moldados por cada passo da nossa história e ela é contada por escolhas, frases, decisões e sorrisos entregues ou não. e há de se ter orgulho de ter chegado até aqui, a pergunta é: quanto tem de humildade dentro de você para chegar em outro lugar que não a continuação deste? e perceba que a pergunta não é sobre coragem, é sobre orgulho – ou sobre o deixar de lado para pisar em novas pedras. meu clichê tem sido dar de cara com situações repetidas, perceber gritar “aha! entendi.” e ir dormir. e acordar de mão dada com ela porque o bicho-papão não saiu de debaixo da cama e a levou embora. essa função vai ser minha, igual tirar a barata morta no canto do banheiro porque ela não vai se desmaterializar, infelizmente. o jeito? tomar uma dose despretensiosa de atrevimento e apontar o pé para o lado que pode até parecer o topo de um abismo mas é apenas livre de certezas.

porque no fim o pássaro só quer voar. às vezes nem pra tão longe assim.

uma estória em um play

sou daquelas que quando entrevistada pela Marília Gabriela “qual seu estilo musical?” eu responderia “ah Marília, sou eclética, gosto de tudo”. e gosto mesmo. como também sou dessas apaixonada por boas estórias, acredito que tudo na vida tem cheiro e tem trilha musical.

adolescente gravava fita cassete. pra mim mesma. no quarto, sentada na cama e rezando pro locutor da rádio não falar no meio da música. ouvia essas fitas no Walkman amarelo que comprei com dinheiro que ganhei vendendo sanduíche natural no colégio. e vendi sanduíche natural no colégio porque queria comprar um Walkman amarelo. mais tarde troquei o Walkman por um MP3 player e muito depois por um iPod que vivia dentro de um tipo de meinha laranja.

pelo visto também gosto de cores não-discretas não é mesmo?

um dia decidi criar uma playlist no Spotify. não a primeira, mas a primeira com destino certo. tendo em vista que o encontro tinha acontecido em uma pistinha não dava pra ser diferente. depois todas as vezes que a gente se encontrava tinha música no fundo. na grama, na sala, na festa, no restaurante, no carro.

cada conversa vinha com uma referência musical, na caixa de som ou só na minha cabeça mesmo.

daí resolvi juntar tudo e criar uma estória musical, não estava dando mais pra deixar tudo aquilo apenas dentro de mim. começou bem racional, uma música que eu simplesmente gosto e você não por pura implicância. aí veio uma música que você escolheu pra competir com a minha. depois tem uma que você disse que lembrava sobre a gente se encontrando nessa vida. e a estória foi sendo contada desse jeito mas bem ali no meio, entre uma faixa e outra eu (me) perdi. bem no meio da playlist. bem no meio da nossa estória.

de repente já não sabia o que sentir e o que ouvir.

recorri à sabedoria de Arnaldo Antunes e escolhi o silêncio.

um dia apertei o play e aquela estória musical se mostrou tão obviamente caótica que era inacreditável eu não ter percebido antes. letras que diziam mais do que eu queria.
letras que diziam o que eu dizia mas não sentia.
letras que diziam o que eu mesmo não sabia que sentia.
letras que dizem o que você não nunca me disse.

acontece que nenhuma estória – nem aquela trilha sonora – eram de uma pessoa só. tinha um fundo musical que você escolheu para uma piada interna. e ainda está lá uma música que até bem pouco tempo eu acreditava que não teria equilíbrio emocional para ouvir novamente.
ali dentro cabe uma estória inteira, uma vida inteira, um sentir sem fim. título, remake, voz, quem, o que, como, cada acorde, cada pausa…

e a declaração mais linda que já recebi.

acho que você não sabe a dimensão disso.

acho que a gente não entendeu a moral da estória.

entre cacos

1 úlcera de córnea
2 pedras na vesícula
7 pontos no queixo
1 carcinoma basocelular sólido
1 queratose liquenoide benigna
5 tatuagens
1 parafuso
3 pintas a menos
1 ligamento a menos
1 cicatriz abaixo do joelho direito
outras tantas no coração

pouco disso é visível mas cada tanto faz parte de um todo, prazer!

kintsugi em japonês significa consertar com ouro e é também uma técnica japonesa de reparação de objetos quebrados, especialmente cerâmicas e porcelanas, com laca misturada com pó de ouro. poderia ser basicamente colar os cacos com uma super cola dourada. mas não é.
é restaurar o que poderia não servir mais.
é não desprezar o que está quebrado.
é re-significar.
é aceitar e valorizar as imperfeições que tornam aquela peça única.

centenas de anos depois, virou uma filosofia de vida que nos faz buscar um outro olhar para nossos tropeços, perdas e fracassos muitas vezes jogados pra debaixo do tapete de máscaras adequadas e bem desenvolvidas. e você passa a achar que pode mesmo (e pode!) engolir o choro e passar reto por esse capítulo. porque olhar para aquele remendo equivaleria a fazer você varrer pra longe o medo de assumir a queda, assumir a dor. acontece meu amor que não há outra função para aquela vassoura atrás da porta que você tem aí.

até porque a cerâmica de antes da queda não existe mais. e nem você. neste ponto que nos encontramos agora não somos mais o que éramos no primeiro parágrafo, no texto anterior, no inicio do ano, na vida passada. o que eu quero agora não é o que queria antes. essas duas metades desse coração partido nas suas mãos podem começar a guardar outras estórias – se você quiser.

trilha sonora da memória


no final do almoço eu decidi te dar carona, aquele que seria o momento mais íntimo que teríamos. você no banco do carona do meu carro, ia me ver dirigindo, senti medo de fazer uma barbeiragem, errar o caminho, me arrepender da carona quando o que eu mais queria era que você dissesse “e se eu desistir da minha reunião?”

liguei o som. não era a hora para sintonizar um dial qualquer.. Spotify. você riu e disse que se é capaz de conhecer uma pessoa pela playlist dela. ri de nervoso. fiquei ainda mais aterrorizada. definitivamente é possível conhecer uma pessoa pelas últimas músicas mais ouvidas, e não pela lista compartilhado publicamente. acho que dei uma desculpa qualquer e resolvi escolher alguma coisa.

hoje de manhã quando o avião acelerou na pista, encostei a cabeça no banco, fechei os olhos e no fone de ouvido começaram os facilmente reconhecíveis primeiros acordes, era “Intro”, do The XX

lembrei de você.

tenho uma amiga que usa o mesmo perfume de um cara que fui apaixonada na pré-adolescência. lá se vão uns 20 anos e deixa pra lá.

adoro cheio de grama cortada com cortador elétrico. me faz lembrar de uma praça perto de casa onde eu ia com meus avós quando era criança. acho que tem foto na parede da casa da minha mãe.

lembro do cheiro do espirro do meu pai. não que seja um cheiro lá muito agradável, mas eu lembro.

sempre me impressiona como somos capazes de fazer verdadeiras viagens no tempo puxados por cheiros e sabores. especialistas dizerem que a memória olfativa é uma das mais duradouras, e a causa isso é que nosso olfato está ligado ao sistema límbico – lá onde o cérebro guarda as memórias e éramos em casa das emoções.

existe até o marketing olfativo, quando uma loja cria ou coloca uma fragrância específica para que cada vez que o cliente sinta aquele cheiro, automaticamente o cérebro vai lembrar daquela marca.

mas a vida é um grande telefone sem fio e do mesmo jeito que as vezes nossa memória nos prega peças, também somos capazes de resignificar nossas lembranças.

certamente em algum momento The XX já significou outra coisa para mim. mas agora me faz lembrar daquela carona, e você me dizendo que quando eu comecei a procurar uma música você tinha certeza que seria alguma dessa banda. sem eu falar nada. era verdade que eu gosto da banda, era verdade que eu queria ouvir aquela música naquela hora mas também era verdade que eu queria de algum jeito impressionar você.

 

bingo!

Mais Limites (ou Auto Amor) Por Favor

foi no meio de uma terça-feira à noite que eu decidi: no sábado eu não vou entrar no Instagram.
precisava me blindar. aliás, eu devia mesmo não entrar nem no sábado nem no domingo.
pronto. tava decidido.
só faltava chegar o sábado e eu não cair em tentação, livrar-me do mal. amém.
e assim foi.

uma angústia abrir o celular pra responder uma mensagem, passar o olho naquele ícone e não clicar.
esperar o elevador olhando pra porta fechada do elevador.
esperar o sinal de trânsito olhando pro visor do rádio.
esperar as pessoas no restaurante olhando pro cardápio, pra rua, pro pé, pro céu.
que martírio Senhor!

esperar.

esperar o tempo. passar o tempo. olhando pra frente. olhando pra gente.
e foi então que algo bem inusitado aconteceu: as outras pessoas me olhavam, e falavam comigo, e enquanto falavam elas olhavam nos seus olhos e eu ficava perturbada. “esse ser humano não pisca?”
ou era eu que tinha desacostumado a olhar?
e veio o almoço, e a sobremesa, e café e a conta e um convite pra uma festinha, ninguém conhecido, porque não? novos amigos, novos assuntos, novos olhares e novas vozes.

e foi então que veio o segundo momento inusitado do dia: de repente ela se percebeu leve, se percebeu livre, percebeu que sem aquele rolar de fotos o tempo tinha outro tempo e a angústia passava ao largo, afinal, dizem mesmo que o que os olhos não veem o coração não sente.

e de noite me percebi dirigindo pra casa com um sorriso no rosto que ficou lá estampado enquanto dormia e não saiu no dia seguinte, e nem no outro, e nem no outro, e você não vai acreditar! passou uma semana inteirinha e eu não entrei em nenhuma rede social sequer.

nada. nadica.

e sabe o que aconteceu?

nada. nadica.

ser humano é tão autocentrado que fica achando que só porque fez um esforço danado pra tomar um decisão, acredita que depois disso um tapete vermelho vai se abrir, uma luz dourada divina vai passar a iluminar seu caminho e o mundo vai se curvar aos seus pés. sinto te dizer. vai acontecer isso não.
daí de onde você tá olhando tá tudo igual.
mas se você virar a lente e olhar pra dentro talvez veja alguma coisa deslocada. e aí é que está a beleza, nada muda, mas tudo mudou.

a onda da vez agora é falar sobre o mal que as redes sociais exercem sobre a gente. detox digital.
a mudança do sentimento de FOMO (Fear of Missing Out) pra JOMO (Joy of Missing).
todo mundo tem opinião sobre isso – e tá todo mundo publicando nas tais redes sociais as suas opiniões sobre elas próprias. e se você me der uma taça de vinho eu publico também.
mas daí que de verdade a gente fala e pouco pratica, a  não ser que a bateria do celular acabe ou algum motivo real aconteça. no meu caso aconteceu.

e eu sobrevivi.

e finalmente entendi uma frase que ouvi em um podcast (afinal existem os dias de glória da tecnologia sim) que dizia que você nunca vai conhecer o seu potencial até que você o coloque em teste.

existe amor no rock’n’roll

a lembrança do primeiro show que eu fui na vida foi do Chico Buarque – acho que no Maracanãzinho mas não tenho tanta certeza assim. lembro de estar deitada na arquibancada, dormindo, cabeça no colo da minha mãe e ela me acordar no momento em que ele entrou no palco. 

Chico foi (e ainda é) meu muso referência da vida, e habitué da vitrola de casa junto com Caetano, Gal, Bethânia e Gil. Raul Seixas. 

influência da baianidade do lado materno da família?

influência da oposição política da época?

entre finais de semana e noites de zum zum zum dos encontros em casa cresci em meio às conversas sobre passeatas, Diretas Já sem saber que estava me preparando para ser uma futura Cara-Pintada. aprendi sobre direitos e delações. aprendi sobre tortura ao mesmo tempo em que aprendi sobre compaixão.

já durante a semana meu tempo era dividido entre a escola pública-federal e o clube nas aulas de natação, jazz ou no chão da biblioteca entre livros e revistinhas aproveitados embaixo do ar condicionado. 

quando estava em casa a trilha sonora era outra, comandada pela ajudante da vez. 

quando bem pequena, Luzia, negra do sorriso largo, da ala das baianas do Salgueiro me apresentou o morro e o seu samba.  

maior um pouco me apresentaram a música romântica, brega. lembro da capa de um LP de Amado Batista e a voz que acompanhava cada sofrida canção. 

dois mundos. 

uma noite de sábado de maio de 2018 e eu vou ao cinema com minha mãe e meus tios. na tela, Paraiso Perdido. 

um filme-homenagem de Lais Bodanski a Odair José. 

com todo esse histórico é de se imaginar que me tornei mais frequentadora de festival de cinema do que das sessões blockbuster e filmes nacionais não costumam ficar de fora do meu cardápio. 

não esperava nada e saí de lá sem conseguir explicar o que aconteceu. 

filme forte, personagens fortes, cenas fortes… cores, lugares. tudo parecia tão antigo e tão atual, tudo me parecia familiar mas vindo de uma dor tão distante.

minha primeira reação foi procurar a trilha sonora do filme no Spotify. bingo! repeat. repeat. repeat.

ouço no fone, na caixa de som, no volume mais alto do carro, decoro cada letra e canto junto ao mesmo tempo que o peito aperta e a lágrima escorre. 

dedico cada música a um personagem da minha vida. 

me imagino em um palco cantando para cada um. re-significo pelo menos 100 palavras da língua portuguesa. e então percebo que lá naquele sobrevivente cinema de rua de Ipanema eu tive uma delicada aula sobre o amor. 

alma gêmea

uma dia me disseram que alma gêmea é um conceito que diz que existem pessoas que vem para passar o resto da vida com você, mas outras vem apenas para cumprir um papel – e estas se traduzem em relacionamentos e sentimentos muito intensos e exatamente por isso é inviável existir para sempre na sua vida.

a pergunta que fica é: e como saber quando é um e quando é outro?

acho que a gente nunca sabe.
podemos querer muito que um seja o outro e o outro seja o um.
podemos sonhar, imaginar e desejar infinito. mas nunca sabemos.
por muitas vezes você busca essa gêmea em formas e olhares conhecidos que ao final te deixam sentadas na solidão da noite.
outras vezes essa outra alma aparece no tropeço de um soluço e se apresenta de uma maneira que você nunca sonhou, imaginou ou desejou nem por um segundo. e ela te arrebata e te carrega para um lugar que GPS nenhum te traz de volta.

o que acontece se você quiser voltar?
o que acontece quando a outra alma domina a sua e você não se reconhece no espelho?
o que acontece ao perceber que a sua alma já não é lá tão gêmea assim daquela outra?
mais!
o que acontece se você quiser ficar e ela voltar?
o que acontece quando a outra alma te abandona no fim do labirinto?
o que acontece ao perceber que a sua intensidade encontrou o silêncio daquela outra?

o vazio também engasga a garganta e preenche a mente.
palavras não ditas, histórias não vividas, lágrimas derramadas e um corpo desalmado.
sobramos entre nadas.
nadas?
nada?

perceber o quão cheio de nós mesmos estamos nesse momento é o pedido mais inglório que a sua própria alma pode te fazer. e o mais generoso.
olhar pra dentro é um exercício de coragem e amor pela alma que carregamos e moldamos desde quando antes de nós ela já nos entendia por gente. aprenderemos que ela veio só por este caminho, único, sem bússola ou instruções de nenhuma outra. sem querer e sem buscar nenhum par fora de você.

e não se preocupe. entre um sorriso e uma colherada outra alma estará na espreita da música observando. e não tem problema se ela não for a gêmea desejada por tanto.
no espelho do banheiro de azulejo amarelado aquela refletida também não é gêmea de você mesma há 5 minutos ou 5 dias atrás.
a gente transmuta. a alma junto. a sua e a outra.

Splaining the mansplaining, ou Como lidamos com o assédio.

Mansplaining
(a blend of the word man and the informal form splaining of the verb explaining)
means “(of a man) to comment on or explain something to a woman in a condescending, overconfident, and often inaccurate or oversimplified manner”.

Ou como as meninas do Think Olga definiram:
“É quando um homem dedica seu tempo para explicar a uma mulher como o mundo é redondo, o céu é azul, e 2+2=4. E fala didaticamente como se ela não fosse capaz de compreender, afinal é mulher.”

Eu tenho uma amiga muito corajosa (amém!) que aprendeu com muito sofrimento o que cada letra de mansplaining significa e contou a sua estória aqui: Por trás da mesa de trabalho, há um coração batendo

Como a gente trabalhava no mesmo lugar eu acompanhei cada momento, ouvi atenta cada confidência, e entre um ombro e uma palavra de incentivo eu ia ficando perplexa tentando buscar dentro de mim alguma explicação para aquilo tudo. Até que um dia, uma terceira pessoa que neste momento já sabia em parte o que estava rolando comentou comigo “Ah, mas ela também não é fácil né?”

Minha respiração parou.

E naquele momento eu entendi que não havia explicação.
Nem para o que o chefe dela estava fazendo, e nem para o comentário que eu tinha acabado de ouvir.
A culpa nunca é da vítima!
Não importa se ela estava de minissaia.
Não importa se ela bebeu demais.
Não importa se ela é dificil – ou ‘não é fácil’ seja lá o que isso quer dizer.
Não importa. Simplesmente não importa.

Um tapa ou uma trepada forçada não são as únicas maneiras de violentar uma mulher. Faze-la se sentir inferior, menor, responsável pela atitude do outro é violência – a violência emocional também é encontrada no dicionário da dor.

E quando de alguma maneira você tenta justificar a atitude do assediador, meu amor, você é cúmplice.
É neste lugar que você quer estar?

 

jantar

Papai do Céu, desejo do fundo do meu coração que eu nunca tenha um aniversário tão desanimado assim. desejo que meus amigos não se sintam envergonhados de cantar parabéns e fazer barulho no restaurante quando o bolo aparecer de repente na minha frente.
se não, melhor ficar em casa não é mesmo?
o que salvou aquele parabéns foi aquele rostinho branquinho com grandes bochechas rosadas e cabelos de anjo com caracois ruivos iluminados pela luz internaminável daquela vela piscante.
impossível não sorrir com a cena.
mas viro o rosto e torno a olhar para a frente. os três casais na mesa redonda erguem as taças. a que será que eles brindam? a amizade? ao amor? cuidado para não engasgarem!
a gordinha de costas pra parede veste um casaco lindo, de chamois, cru, parece estar aquecida, mas certamente desconfortável. morte às vendedoras que dizem que você está ótima quando deveriam te trazer um número maior. a amiga do lado tem exatamente aquele cabelo da propaganda mal dublada de shampoo. nunca acreditei que aquilo poderia ser de verdade. a inveja toma conta da minha alma por um momento.
acho que ela disse que quando estivesse mais velha quer sair da cidade e morar no interior – o com cara de árabe e marido sentado na frente dela ri alto. “Sem wi-fi? Sem tv a cabo? Sem… (ele faz um gesto batendo o dorso dos dedos da mão direita na palma da mão esquerda)”. e ri de novo.
acho que ele quis dizer que casais mais velhos que moram no interior não tem assunto, confere produção?
o amigo careca acha graça de tudo que ele fala. ou concorda ou já não tem assunto com a esposa gordinha sentada ao lado nos dias de hoje mesmo. ou será que ele gostaria de trocar a esposa gordinha pelo galã da novela? o outro marido usa a franja dos cabelos brancos impecavelmente dividida no meio. nenhum fio se move, assim como a esposa quando ele levanta sozinho para fumar um cigarro lá fora. ela apenas respira e continua a observar a conversa da mesa. essa lei anti-tabagismo afasta os casais, ou talvez crie novos casais.
agora consigo ver parte da mesa atrás. ele limpa a garrafa de vinho com o guardanapo de pano e a coloca dentro de uma embalagem para viagem. se ele tivesse bebido aquela garrafa toda talvez eu o tivesse visto arrancar os óculos de grau, rodado aquela pashimina azul bebe no ar e dançado YMCA apoiando uma das pernas em cima da cadeira. teriamos precisado uma bela catarse emocional. mas ele apenas se levanta, veste a enorme jaqueta impermeável vermelha e vai embora.
o chão de madeira treme, as crianças não param. um deles pára na minha frente – deve ter sete anos, de gola rolê certeza é uma miniatura do pai. parece educado, acho que rouba-lo para mim. já dorme a noite toda, escolheu o time de futebol e é menos capeta que o outro 30 cm menor que surgiu de onde?
eles fogem. o conchlione me vence. a especialidade da casa vai me fazer pedir perdão por garfada a cada passo que eu der no meu caminho volta para o hotel.
o casal da mesa ao lado gastou as calorias do pedido em uma carne alta envolta em um creme que parece ser de muitos queijos. a essa altura já deve estar meio frio já que eles conversam mais do que comem. típicos franceses com aquele savoir-faire que me faz perceber que até a temperatura do noite fria parece ser diferente para eles. ela veste uma divertida camisa de seda e não pisca enquanto olha para ele falando com todo o charme e biquinho necessários envolto em uma casual porém impecável camisa jeans. o garçom gasta todo o seu latim dando boas vindas e desejando um “bon appetit!”. Ismael tem um sorriso largo e rapidamente já está sendo o fotografo oficial da outra mesa. XIS!
ele vira as costas e bela adolescente com sotaque português volta lentamente ao seu jantar. tão lentamente que sobra tempo para ela beliscar o jantar do rapaz com espinhas na rosto e ar blasé ao lado dela.
ah se ele soubesse que nunca mais irá comer um prato sozinho…
chegou a minha conta.