touro e suas manias e sentires

esse texto começava dizendo que esse seria o mais difícil de escrever, porque era sobre o meu signo. tão verdade e tão difícil foi que eu travei no meio. veio o signo, saiu o signo e o texto aqui. parado. não ia pra frente nem pra trás nem pra lugar nenhum. volta e meia ele aparecia na minha cabeça. e eu fugia. e tudo ficou mais difícil nesse caso porque apesar de eu ter criado essa temática, não gosto de ligar tudo ao signo.

sim. isso é – e foi – uma cilada Bino.

dou até risada dos memes e lentes de aumento em características de cada signo, mas ao mesmo tempo não sou fã do “ah, isso é coisa de taurino”. não gosto de me ver em descrições, em bullet points como se eu fosse checklist de receita de confeitaria francesa. não sou de colocar pessoas em caixas, não afirmo que ninguém é de algum jeito como imutável, mas vou te ajudar e se quiser falar me rotular diga que uma das coisas que mais me irrita é me colocar rótulos! nem bons nem ruins. sou devota ao Eterno Deus Mu Dança, de Gilberto Gil. não sou muitas coisas que já fui e nada do que ainda serei. e mudar olha só, é uma coisa que dizem que taurinos não gostam.

sigo a cartilha taurina na valorização da boa comida, casa confortável, cama gostosa. é a tríade da felicidade mesmo e não entendo quem não concorde. conheço uma pessoa que já disse que a vida seria mais fácil se se alimentasse com cápsulas, tipo os astronautas. mas chega a suspirar quando cita a “o nhoque e o molho vermelho da tia”. ou seja, pode não ser companhia pra restaurante japonês mas adora uma comida com sabor de afeto.

dizem que taurinos ruminam sentimentos, uma coisa assim bem bicho mesmo. real. sou assim. tudo que me falam eu acredito, confio na palavra, guardo. então naturalmente faço igual, espero que você acredite no que digo. cada palavra aqui nesse texto por exemplo foi pensada e colocada. não tem essa de “da boca pra fora”. penso demais antes de te dizer alguma coisa. porque não vai rolar desdizer depois. te pedir pra desouvir. então eu fico aqui, ruminando, avaliando, pra te dizer certinho o que quero que você ouça. e guarde.

outro item da cartilha taurina que me faz rir e sofrer e está na minha lista de tema complexo; o ciúmes. sim, sinto. das amigas, na família, no relacionamento. e de verdade não acho que estou no ponto comum da posse.

cavucando tudo acho que no fim está tudo ligado a querer se sentir especial, dona de um espaço único no coração das pessoas. e não te absolutamente nada a ver com um papo besta de quem sente é porque faz, ou faria. filosofia de botequim que ninguém nem sabe de onde veio mas repete. quem sente, sente. quer sentir, não magoar.

se cavucar mais pode estar ligado a um medo da perda, do ser deixada de lado, preterida.

se cavucar mais certeza alguém vai levantar a bola da insegurança e que vivemos em uma comunidade e então porquê querer ser feliz sozinho? é impossível, né Tom?

bom, se cavucar mais eu corto os pulsos.

o calor de áries

eu queria escrever agora sobre ciumes, mas – não sei se alguém notou – me coloquei uma regra de cada mês escrever sobre um sentimento ligado a simbologia do signo do momento. então vou ter que deixar o ciumes para o proximo texto, de touro. e vou aproveitar o mood e o inferno astral para falar da raiva, da energia da raiva já que estamos ainda sob o sol de áries.

sou filha de um ariano. arianão mesmo. e tenho a venus em áries. parece que isso quer dizer eu tendo a expressar meus sentimentos de forma enérgica. nos arautos da astrologia isso tem um viés bem bonito que fala de determinação, impulsividade e um ardor no amor e no romance. eu quando ligo as estrelas vejo a filha de um pai de voz grossa e opiniões radicais, uma taurina que não gosta de injustiças e uma forma rude de falar quando pisam no seu calo.

e se a gente deixar todo esse blá astrologico de lado e focar no que toca o corpo, eu lembro do filme mais legal para todas as idades nos ultimos tempos: divertidamente. o personagem da raiva é representado em um homenzinho vermelho, de camisa social e gravata (coitado!) que tá sempre ansioso e quando explode sai chamas pela cabeça. eu dou risada quando vejo a cara dele puto.
mas entendo. muito.

Divertida Mente (Inside Out), Disney

essa coisa de não aceitar o que está sendo mostrado e não compreender porque aquilo está acontecendo, acorda esse sentimento primitivo, que te toma o corpo de te coloca num lugar quase de um instinto de sobrevivência. e ali tudo se mistura e se perde. é quando literalmente perdemos a razão – a dor vem tão grande que entope o peito e sai por todos os poros. a visão fica turva e a nuca arde.
vão dizer que a falta de controle é infantil. e é. a criança coloca todos os sentimentos para fora. mesmo quando ainda não sabe nomea-los. saber nomear já é um estado avançado. nomear, reconhecer, se conectar com o sentimento e admiti-lo é bem adulto.
julgar o outro e inferiorizar seu sentimento, é arrogância.

a raiva tem uma força propulsora. criativa até.
pode te levar a quebrar um duzia de copos, ou te empurrar a correr uma maratona.
ou escrever um texto.

esses peixes e suas marés

esse texto chega uma rodada atrasado porque eu dei uma procrastinada básica para escrever e esse texto também é sobre isso. e assim começo lembrando que esse signo não é “Peixe”, é “Peixes”. são dois. um nadando pra cima e outro nadando pra baixo. dois peixes, dois mundos.
introvertido e extrovertido, depende da maré.
como a gente.
ou como eu pelo menos.

não sou de Peixes, mas carrego em mim essa dualidade de sentimentos. até mesmo uma certa incoerência, confesso. às vezes pode ser dificil para quem tá de fora acompanhar, mas parei de ligar para isso também. já tentei ser 8 ou 80, já tentei não misturar as coisas, já tentei colocar linhas delimitantes claras e afirmar “isso não!”. até que: sim.
moro ali nos 40, numa zona que pode ser cinza para você mas para mim é bem colorida.
ouvi uma vez que sentimentos não são binários, você não sente uma coisa ou outra, não é isso ou aquilo. muitas vezes sentimentos são isso e aquilo.
alivio e angustia.
tristeza e expectativa.
tente lembrar o que você sentiu quando mudou de emprego, ou terminou um relacionamento, ou mudou de casa. tinha um só sentimento ali?

na verdade nem precisa ser um momento muito significativo na vida não. hoje acordei animada e solitária. vai encarar o dia o agora…

a dualidade emocional é uma característica forte do signo de Peixes. assim como o fato de serem o último signo do Zodíaco ou, dizem, a representação do final da jornada evolutiva já que todos esses simbolismos falam da jornada do herói, mas esse é mote pra outro texto.
então, no fim, abraçar a multiplicidade emocional é um exercicio de maturidade?

esse ano eu tive o prazer de ver e ouvir a Ester Perel (e a Brene Brown, obrigada Senhor!) gravarem juntas um podcast ao vivo no SXSW. “Unlocking Us” #ficaadica
e uma das muitas coisas que me bateu ali foi a Perel falando sobre um hábito que temos de intepretar comportamentos e colocar as pessoas em caixas, partindo do principio que elas não irão mudar. eu ainda incluiria aqui um adendo: quem somos nós para analisar o comportamento humano baseado apenas no nosso ponto de vista? mas enfim, ela nem levantou essa bola. seguiu dizendo que nós mudamos, nós evoluimos. e agimos hoje como se essa fluidez de comportamento não tivesse mais relevância. nos tornamos tão ensimesmados, virados para a nossa própria bolha que não conseguimos orientar nosso olhar para o coletivo, para a possibilidade do que não é homogeneo a nós.

zero evolução namastê aqui, apenas a certeza de rótulo bom é rótulo de vinho.
tin tin.

aquário e suas eras

eu tenho aquário na casa 9. e a casa 9 é a casa que fala de fé, de expansão de identidade, de estudos, filosofia e viagens mentais (sim!). aquário é signo do questionar, de temas coletivos, da galera inovadora, progressiva e fora da caixa. e aquário na casa 9 – o meu caso – traz quem gosta de decifrar simbolos, ensinamentos ocultos e matérias como astrologia.
pronto, esse texto é sobre mim e eu já começo falando sobre mim mesma e me justificando por estar falando sobre mim. porque essa também sou eu.

e também porque eu sou metida de falar de astrologia só pra chamar atenção e me mostrar entendida já que eu gosto, ouço, leio mas entendo lhufas.

Foto por Sebastian Arie Voortman em Pexels.com

na adolescência eu fiz o curso que mais me orgulho de ter feito até hoje. no planetário do Rio de Janeiro, uma semana de aula de identificação do céu. passava horas dentro daquele espaço escuro, olhando pra cima, aquele teto arredondado e percebendo os desenhos que as estrelas formavam, o movimento da terra, as orbitas dos planetas e ouvindo estórias que até hoje conto. você sabia que as três marias formam o cinturão de Órion que era um guerreiro da mitologia grega? ele se achava o máximo e Zeus mandou um escorpião pra baixar a bola dele. mas Órion nem tchum pro bicho, que de raiva o picou e o guerreiro morreu. Zeus então transformou os dois em estrelas e jogou no céu e desde então quando você avistar uma das duas constelações no céu, pode traçar uma linha de 180 graus que vai achar o outro, porque eles estão lá, travando uma briga de gato e rato eterna.

(bonita a história né? já usei muito como papo em momentos estratégicos da vida. agora que sou uma senhora aposentada divido com o mundo. use livremente, nem precisa dar crédito)

pois bem, tenho zero a arrogância oriana de dar conselho baseado no nada que sei dos astros ou de qualquer assunto. muita gente faz isso. seja porque não entenda a ignorância como limitante ou porque quer mesmo chamar atenção pra si. e muitas vezes saem destilando verdades fundamentadas em grandes achometros. nada de novo no reino da Dinamarca, mas convenhamos que em tempos de matérias reduzidas a legendas e atenção difusa, uma pesquisa rápida no Google ou uma deslizada de tela podem fazer você se sentir um grande entendendor capaz de afirmar conceitos e até conceder diagnósticos clínicos. já recebi um desses mas fui salva pela terapia em uma sessão baseada em estudos e títulos reconhecidos pelo MEC. amém.

aquarianos são imparciais, não gostam de regras e valorizam a liberdade, ao mesmo tempo que entendem que qualquer progresso da humanidade começa pela empatia e compaixão. e do alto vertice da minha casa 9 nesse momento minha única recomendação é começar pela autocompaixão.
vale pensar eternamente sobre a Alegoria da Caverna de Platão,
ler A Arte da Imperfeição, da sempre maravilhosa Bene Brown,
ou ouvir a Vanessa Pérola conversando no podcast Bom dia, Obvious.

e não, nada aqui é uma verdade absoluta. são viagens mentais baseadas em uma curiosidade permanente de quebrar a monotonia dos assuntos cotidianos.

bem vindos a era de Aquário.

Carta para Düsseldorf

Barra do Una, 06 de Setembro de 2023

Acho que não sei mais escrever cartas. Entre abreviações, emojis e reações a gente vai perdendo pouco a pouco a capacidade de conjugar verbos, usar adverbio e, virgulas.
Daqui a pouco completa 3 meses que você viajou e 3 meses + 1 dia que eu estou com essa carta na minha cabeça. Na verdade, na véspera da sua ida, eu estava dirigindo distraída e fazendo uma curva na Raposo Tavares e pensei como a vida é minimamente surpreendente. Além do fato de eu não ter tido nenhum acidente dirigindo desse jeito, eu fui dar de te conhecer na sua despedida.

Sou taurina, tenho pouca simpatia com mudanças e muito ciume dentro de mim. Ciume de mãe, de irmão, de avó, de amor, de amigos. Então quando uma amiga diz que vai mudar o lugar do nosso jantar para um boteco porque é despedida de uma (outra) amiga, um furacão emerge de dentro de mim. E quando ela diz que não vai dar tempo para chegar no nosso jantar e me intima para ir atrás dela no tal bar, eu só consigo pensar que posso alegar TPM e por ser ré primária minha pena vai ser leve. Mas também sou educada e analisada o suficiente para apenas responder: “tamo indo amiga“.

E aí eu sou apresentada a você. De sorriso largo e fala apressada, que vira as costas para aquela mulherada toda e volta a sua atenção para quem acabou de chegar. O gesto simpático virou um derrame de conversa sem fim. O assunto não parou, os temas variaram, o bar fechou, a gente migrou pro bar do lado e ninguém queria ir embora. Pouco mais de 2 semanas depois eu estava vestida a carater para um churrasco junino a 21 km da minha casa, só porque era a sua despedida – de novo. E duas semanas depois, ahá, lá estava eu de volta aquele primeiro bar, dessa vez sem nem a amiga que começou toda essa estoria, para brindar a sua vida e se despedir um pouco mais.

Nesse momento eu já tava unida no coro de quem sofria com a sua partida e já sentia saudades antecipadas. Eu já estava fazendo conta em Euro com você, preocupada como o Vitão ia ficar longe dos amigos da escola, se você estava levando remédio suficiente, dando pitaco na sua vida e desejando aproveitar o quarto de hóspedes da casa que você ainda nem tinha pisado.
Porque essa é você.
Essa mulher-imã que atrai a atenção do quarteirão e faz qualquer um questionar os ponteiros do relógio, porque o seu tempo é outro. Seu pensamento acelerado esconde análises pronfudas, cheias de sentir. Sua generosidade com as pessoas é elevada no seu amor pelas amigas – as novas, antigas, preferidas ainda que preferindo mesmo todas no mesmo tom. Sua força de agir anda de mãos dadas com o choro escondido atrás da porta, e revela a alma sublime e leve de quem quer delicadamente engolir a vida sem deixar ninguém para trás.

Ma, me despedir te conhecendo foi a aula de vida mais rápida e rica que eu já tive.
Obrigada por me encaixar por entre contextos, empadas e a cerveja saideira.
Espero que você já tenha conseguido sentar na grama e simplesmente se dado ao luxo de apenas viver.

Saudades,

beijo
Lais

velhos novos hábitos

sei que é meio do ano e eu devia estar mais preocupada em achar uma roupa de festa junina no armário do que uma reflexão profunda perdida nas gavetas. mas entre um gole e outro de quentão olhei pra trás e revivi a minha virada de ano.

em mais uma repetição incomodos hábitos, deixamos para resolver onde passar o reveillon em cima da hora. muitas mensagens, triangulação de distâncias e agendas depois encontramos uma casa na serra do Rio de Janeiro. quatro suítes, piscina, churrasqueira, espaço paras crianças e mesa de sinuca para quem chegasse primeiro. uma casa de Airbnb em um feriado pouco-muito programado é obviamente cercado de muitas expectivas. alguma coisa entre “pra onde eu fujo se for ruim?” e um review clichê de “as fotos não refletem o quanto o lugar é incrivel“.
não sei nem dizer ao certo pra qual lado caímos. estar ali fez eu me sentir dentro do tabuleiro daquele jogo Detetive. tinha certeza que o Coronel Mostarda ia chegar a qualquer momento, e fiquei tentando decidir debaixo de qual dos 7 sofás das 4 salas interligadas eu esconderia o candelabro.
cheguei abrindo todas as janelas – pequenas e grandes. liguei todos os ventiladores portateis dos quartos e caminhei pela casa borrifando um álcool em spray com cheiro de lavanda que a minha sogra tinha trazido de Miami, endossando meu novo hábito pos-pandemia.

muitos espirros e dias ensolarados e chuvosos depois, achei por bem que valia a pena estourarmos os espumantes no dia 31 do lado de fora da casa. não tinha festa nem fogos de artificio mas sei lá, é o tal do hábito ne? contagem regressiva, beijos, abraços, desejos sinceros e um pouco depois da meia noite alguém questionou o porquê de estarmos no frio celebrando o ano novo ao lado da gargem com meia duzia carros. voltamos para dentro da casa.

hoje eu acho que sabia porque preferia estar ali, debaixo da imensidão escura daquele ar gelado, em cima de camadas de concreto, rocha, terra e raízes.
espremida e ampla.
desconectada daquele dentro velho com cheiro de mágoas guardadas.
buscando ser inundada por algo que eu não podia ver.
ainda.


livro do bebê

tenho uma amiga que, quando trabalhavamos juntas, a cada vez que descobríamos alguma coisa dizia “Muito bem! Já pode colocar no Livro do Bebê.” era uma referência àquele livro que toda mãe ganhava quando engravidava e ia marcando as datas importantes de desenvolvimento do pequeno ser humaninho como primeiro dente, primeiros passos, primeiras palavras..
uma verdadeira coletânea de aprendizados.

lembrei dela quando em Janeiro de 2020 decidi criar o meu Projeto Livro do Bebê. a idéia era aprender uma coisa nova por mês, algo que na essência não tivesse nenhuma ligação com minha carreira e trabalho já que invariavelmente era onde eu há anos colocava meus esforços.
e foi assim, sentada na canga aproveitando alguns dias de férias na praia, que fui jogando no bloco de notas do celular uma mistura de desejos antigos e novos e a lista foi sendo criada:
– degustação de vinho
– dança do ventre
– pão
– perna de pau
– canto

alerta de mensagem: uma amiga a 444km de distância indicando um curso “Recebi isso e lembrei de você!”, ela dizia. poucas vezes na vida eu fui tão aplicada em um dever de casa, e foi assim que eu determinei a primeira aula do ano e as idéias viraram fatos.
– Janeiro – dança afro
– Fevereiro – tamborim (Carnaval tava ali né?)
– Março – leitura de tarot

e bom, cá estamos. Dezembro de 2020, uma lista de planos não realizados, uma lista de nomes que tiveram seus planos interrompidos. dizer que este ano foi um ano de aprendizados é chover no molhado e minimizar 180 mil estórias, até agora.
mas talvez na minha lista estivesse faltando “aprender a aprender”.
aprender a respeitar meus medos, minhas lágrimas e meus sorrisos mesmo em meio ao caos.
aprender a respeitar o tempo do outro, as escolhas do outro e cada uma de suas palavras e seus silêncios.

aprender o olhar o agora, já que como dizia o poeta, “Breve é o dia. Breve é a vida.”

querida.

gaiola

“Um pássaro numa gaiola durante a primavera sabe muito bem que há algo a fazer, mas não pode fazer nada. O que eu será? Ele não se lembra muito bem. Então ele se agita no espaço pequeno e diz a si mesmo ‘tenho uma vaga lembrança’.
Os outros pássaros fazem seus ninhos, tem seus filhotes e saem em revoada. Então ele bate com a cabeça na grade e a gaiola continua ali.
‘O s
enhor é um vagabundo Senhor Van Gogh’ diz um pássaro que passa.
N
o entanto eu não morro, eu vivo.
Nada exteriormente revela o que se passa dentro de mim. Às vezes eu estou mais ou menos feliz entre minhas grades e os raios de sol lá fora.
E
stou preso.
Estou preso – e sou a minha gaiola.”

este é um trecho de uma peça, Van Gogh – A Sombra do Invisível monólogo onde João Paulo Lorenzon interpreta as angústias lúcidas das cartas que Vicent Van Gogh escreveu para o irmão Théo. o porão do Espaço Viga estava escuro mas ainda assim tentei rabiscar algumas palavras na pequena caderneta que vive na minha bolsa. quase inútil.

dias depois tive a supresa e o prazer de ganhar a voz do João declamando o trecho no meu WhatsApp.

faço parte da turma Tratadinha Porém Rebelde que já fez muita terapia e se deu alta. eu sigo me analisando diariamente e presa no dilema de ligar para a analista e ter preguiça de contar tudo que aconteceu nesse meio tempo e chegar à conclusão que não aprendi nada desde então. enquanto isso, abro mais uma garrafa de vinho e destravo todos os pinos da cabeça pensando o quanto somos presos-libertos ou libertinos-presos na máquina da vida. e não falo de ligar o foda-se e decidir virar a noite dançando, transando ou maratonando aquela série sem ligar pra reunião no dia seguinte. essa parte tá fácil.

o quanto você está preso nas suas próprias crenças, verdades, angústias?

o quanto você faz uso do seu livre arbítrio escondendo sob o verbo a sua insegurança, seu medo e a própria vergonha?

acreditamos fazer parte de um mundo sem fronteiras e sem limites, mas seguimos nos movendo dentro de um espaço conhecido, dentro de uma fachada confortável e segura da qual somos prisioneiros (muitas vezes) sem saber. careta ou não você é apenas uma aparência dissimulada da sua verdade. uma vez ouvi um guru me dizer que um dia aprenderíamos que as chaves que trancam as portas das nossas gaiolas estão com a gente o tempo todo. ou talvez ainda ficássemos espantados ao verificar que a porta da gaiola está destrancada – mais! ficaríamos mesmo estupefados ao percebermos que a gaiola que nos prende sequer tem grades.

o quanto nos ancoramos dentro dos nossos próprios clichês por medo de formular novas frases e novos pensamentos?

não há dúvidas que somos moldados por cada passo da nossa história e ela é contada por escolhas, frases, decisões e sorrisos entregues ou não. e há de se ter orgulho de ter chegado até aqui, a pergunta é: quanto tem de humildade dentro de você para chegar em outro lugar que não a continuação deste? e perceba que a pergunta não é sobre coragem, é sobre orgulho – ou sobre o deixar de lado para pisar em novas pedras. meu clichê tem sido dar de cara com situações repetidas, perceber gritar “aha! entendi.” e ir dormir. e acordar de mão dada com ela porque o bicho-papão não saiu de debaixo da cama e a levou embora. essa função vai ser minha, igual tirar a barata morta no canto do banheiro porque ela não vai se desmaterializar, infelizmente. o jeito? tomar uma dose despretensiosa de atrevimento e apontar o pé para o lado que pode até parecer o topo de um abismo mas é apenas livre de certezas.

porque no fim o pássaro só quer voar. às vezes nem pra tão longe assim.

uma estória em um play

sou daquelas que quando entrevistada pela Marília Gabriela “qual seu estilo musical?” eu responderia “ah Marília, sou eclética, gosto de tudo”. e gosto mesmo. como também sou dessas apaixonada por boas estórias, acredito que tudo na vida tem cheiro e tem trilha musical.

adolescente gravava fita cassete. pra mim mesma. no quarto, sentada na cama e rezando pro locutor da rádio não falar no meio da música. ouvia essas fitas no Walkman amarelo que comprei com dinheiro que ganhei vendendo sanduíche natural no colégio. e vendi sanduíche natural no colégio porque queria comprar um Walkman amarelo. mais tarde troquei o Walkman por um MP3 player e muito depois por um iPod que vivia dentro de um tipo de meinha laranja.

pelo visto também gosto de cores não-discretas não é mesmo?

um dia decidi criar uma playlist no Spotify. não a primeira, mas a primeira com destino certo. tendo em vista que o encontro tinha acontecido em uma pistinha não dava pra ser diferente. depois todas as vezes que a gente se encontrava tinha música no fundo. na grama, na sala, na festa, no restaurante, no carro.

cada conversa vinha com uma referência musical, na caixa de som ou só na minha cabeça mesmo.

daí resolvi juntar tudo e criar uma estória musical, não estava dando mais pra deixar tudo aquilo apenas dentro de mim. começou bem racional, uma música que eu simplesmente gosto e você não por pura implicância. aí veio uma música que você escolheu pra competir com a minha. depois tem uma que você disse que lembrava sobre a gente se encontrando nessa vida. e a estória foi sendo contada desse jeito mas bem ali no meio, entre uma faixa e outra eu (me) perdi. bem no meio da playlist. bem no meio da nossa estória.

de repente já não sabia o que sentir e o que ouvir.

recorri à sabedoria de Arnaldo Antunes e escolhi o silêncio.

um dia apertei o play e aquela estória musical se mostrou tão obviamente caótica que era inacreditável eu não ter percebido antes. letras que diziam mais do que eu queria.
letras que diziam o que eu dizia mas não sentia.
letras que diziam o que eu mesmo não sabia que sentia.
letras que dizem o que você não nunca me disse.

acontece que nenhuma estória – nem aquela trilha sonora – eram de uma pessoa só. tinha um fundo musical que você escolheu para uma piada interna. e ainda está lá uma música que até bem pouco tempo eu acreditava que não teria equilíbrio emocional para ouvir novamente.
ali dentro cabe uma estória inteira, uma vida inteira, um sentir sem fim. título, remake, voz, quem, o que, como, cada acorde, cada pausa…

e a declaração mais linda que já recebi.

acho que você não sabe a dimensão disso.

acho que a gente não entendeu a moral da estória.

entre cacos

1 úlcera de córnea
2 pedras na vesícula
7 pontos no queixo
1 carcinoma basocelular sólido
1 queratose liquenoide benigna
5 tatuagens
1 parafuso
3 pintas a menos
1 ligamento a menos
1 cicatriz abaixo do joelho direito
outras tantas no coração

pouco disso é visível mas cada tanto faz parte de um todo, prazer!

kintsugi em japonês significa consertar com ouro e é também uma técnica japonesa de reparação de objetos quebrados, especialmente cerâmicas e porcelanas, com laca misturada com pó de ouro. poderia ser basicamente colar os cacos com uma super cola dourada. mas não é.
é restaurar o que poderia não servir mais.
é não desprezar o que está quebrado.
é re-significar.
é aceitar e valorizar as imperfeições que tornam aquela peça única.

centenas de anos depois, virou uma filosofia de vida que nos faz buscar um outro olhar para nossos tropeços, perdas e fracassos muitas vezes jogados pra debaixo do tapete de máscaras adequadas e bem desenvolvidas. e você passa a achar que pode mesmo (e pode!) engolir o choro e passar reto por esse capítulo. porque olhar para aquele remendo equivaleria a fazer você varrer pra longe o medo de assumir a queda, assumir a dor. acontece meu amor que não há outra função para aquela vassoura atrás da porta que você tem aí.

até porque a cerâmica de antes da queda não existe mais. e nem você. neste ponto que nos encontramos agora não somos mais o que éramos no primeiro parágrafo, no texto anterior, no inicio do ano, na vida passada. o que eu quero agora não é o que queria antes. essas duas metades desse coração partido nas suas mãos podem começar a guardar outras estórias – se você quiser.