Mas por que você não desistiu?

Esta foi a pergunta que ouvi de uma amiga, quando eu disse que estava toda dolorida depois de uma prova de 10km debaixo de chuva.

Não corria fazia seis anos, decidi fazer a prova duas semanas antes e 5km era tudo o que havia treinado.

Ao mesmo tempo que parecia que eu, o sofá e a TV éramos uma coisa só. Esta pergunta ficou ecoando na minha cabeça igual à música ruim quando não paramos de cantar. 

Não tinha como fugir. Respondi.

Não desisti pelo mesmo motivo que me fez insistir em uma amizade que ficou por um triz quando éramos amigas há apenas dois anos e hoje já soma mais de vinte; que me fez mudar para um país que não tinha nada que me atraísse de primeira além da oportunidade de aprender uma língua nova; que me fez enfrentar muito mais de um processo seletivo depois da minha primeira demissão.

O motivo está em mim. Ou melhor, eu sou o meu motivo.

Porque as “corridas” mais difíceis que travamos definitivamente são com a gente mesmo. E por mais clichê que pareça – é raro termos esta percepção antes dos trinta e muitos.

Eu não desisti de correr só para me lembrar que esta jornada aqui a gente começa e termina sozinhos, que quem melhor pode cuidar de mim sou eu, que cuidar de mim me dá muito (ou quase tudo) do que preciso para cuidar dos que eu amo: paciência, amor e o exercício do não-julgar. Para lembrar que o meu ir e vir é livre. E que a escolha de voltar para o mesmo lugar é uma das mais prazerosas, quando neste lugar tem um quem.

Não desisti para me lembrar que não importa a lesão – seja no joelho ou no coração, a queda, o passo mais lento ou mais apressado; quem cruza a minha linha de chegada sou eu e ninguém mais.

E você “corre”? Pra quem? Pra onde? E por quê?

Carta para Düsseldorf

Barra do Una, 06 de Setembro de 2023

Acho que não sei mais escrever cartas. Entre abreviações, emojis e reações a gente vai perdendo pouco a pouco a capacidade de conjugar verbos, usar adverbio e, virgulas.
Daqui a pouco completa 3 meses que você viajou e 3 meses + 1 dia que eu estou com essa carta na minha cabeça. Na verdade, na véspera da sua ida, eu estava dirigindo distraída e fazendo uma curva na Raposo Tavares e pensei como a vida é minimamente surpreendente. Além do fato de eu não ter tido nenhum acidente dirigindo desse jeito, eu fui dar de te conhecer na sua despedida.

Sou taurina, tenho pouca simpatia com mudanças e muito ciume dentro de mim. Ciume de mãe, de irmão, de avó, de amor, de amigos. Então quando uma amiga diz que vai mudar o lugar do nosso jantar para um boteco porque é despedida de uma (outra) amiga, um furacão emerge de dentro de mim. E quando ela diz que não vai dar tempo para chegar no nosso jantar e me intima para ir atrás dela no tal bar, eu só consigo pensar que posso alegar TPM e por ser ré primária minha pena vai ser leve. Mas também sou educada e analisada o suficiente para apenas responder: “tamo indo amiga“.

E aí eu sou apresentada a você. De sorriso largo e fala apressada, que vira as costas para aquela mulherada toda e volta a sua atenção para quem acabou de chegar. O gesto simpático virou um derrame de conversa sem fim. O assunto não parou, os temas variaram, o bar fechou, a gente migrou pro bar do lado e ninguém queria ir embora. Pouco mais de 2 semanas depois eu estava vestida a carater para um churrasco junino a 21 km da minha casa, só porque era a sua despedida – de novo. E duas semanas depois, ahá, lá estava eu de volta aquele primeiro bar, dessa vez sem nem a amiga que começou toda essa estoria, para brindar a sua vida e se despedir um pouco mais.

Nesse momento eu já tava unida no coro de quem sofria com a sua partida e já sentia saudades antecipadas. Eu já estava fazendo conta em Euro com você, preocupada como o Vitão ia ficar longe dos amigos da escola, se você estava levando remédio suficiente, dando pitaco na sua vida e desejando aproveitar o quarto de hóspedes da casa que você ainda nem tinha pisado.
Porque essa é você.
Essa mulher-imã que atrai a atenção do quarteirão e faz qualquer um questionar os ponteiros do relógio, porque o seu tempo é outro. Seu pensamento acelerado esconde análises pronfudas, cheias de sentir. Sua generosidade com as pessoas é elevada no seu amor pelas amigas – as novas, antigas, preferidas ainda que preferindo mesmo todas no mesmo tom. Sua força de agir anda de mãos dadas com o choro escondido atrás da porta, e revela a alma sublime e leve de quem quer delicadamente engolir a vida sem deixar ninguém para trás.

Ma, me despedir te conhecendo foi a aula de vida mais rápida e rica que eu já tive.
Obrigada por me encaixar por entre contextos, empadas e a cerveja saideira.
Espero que você já tenha conseguido sentar na grama e simplesmente se dado ao luxo de apenas viver.

Saudades,

beijo
Lais

velhos novos hábitos

sei que é meio do ano e eu devia estar mais preocupada em achar uma roupa de festa junina no armário do que uma reflexão profunda perdida nas gavetas. mas entre um gole e outro de quentão olhei pra trás e revivi a minha virada de ano.

em mais uma repetição incomodos hábitos, deixamos para resolver onde passar o reveillon em cima da hora. muitas mensagens, triangulação de distâncias e agendas depois encontramos uma casa na serra do Rio de Janeiro. quatro suítes, piscina, churrasqueira, espaço paras crianças e mesa de sinuca para quem chegasse primeiro. uma casa de Airbnb em um feriado pouco-muito programado é obviamente cercado de muitas expectivas. alguma coisa entre “pra onde eu fujo se for ruim?” e um review clichê de “as fotos não refletem o quanto o lugar é incrivel“.
não sei nem dizer ao certo pra qual lado caímos. estar ali fez eu me sentir dentro do tabuleiro daquele jogo Detetive. tinha certeza que o Coronel Mostarda ia chegar a qualquer momento, e fiquei tentando decidir debaixo de qual dos 7 sofás das 4 salas interligadas eu esconderia o candelabro.
cheguei abrindo todas as janelas – pequenas e grandes. liguei todos os ventiladores portateis dos quartos e caminhei pela casa borrifando um álcool em spray com cheiro de lavanda que a minha sogra tinha trazido de Miami, endossando meu novo hábito pos-pandemia.

muitos espirros e dias ensolarados e chuvosos depois, achei por bem que valia a pena estourarmos os espumantes no dia 31 do lado de fora da casa. não tinha festa nem fogos de artificio mas sei lá, é o tal do hábito ne? contagem regressiva, beijos, abraços, desejos sinceros e um pouco depois da meia noite alguém questionou o porquê de estarmos no frio celebrando o ano novo ao lado da gargem com meia duzia carros. voltamos para dentro da casa.

hoje eu acho que sabia porque preferia estar ali, debaixo da imensidão escura daquele ar gelado, em cima de camadas de concreto, rocha, terra e raízes.
espremida e ampla.
desconectada daquele dentro velho com cheiro de mágoas guardadas.
buscando ser inundada por algo que eu não podia ver.
ainda.


livro do bebê

tenho uma amiga que, quando trabalhavamos juntas, a cada vez que descobríamos alguma coisa dizia “Muito bem! Já pode colocar no Livro do Bebê.” era uma referência àquele livro que toda mãe ganhava quando engravidava e ia marcando as datas importantes de desenvolvimento do pequeno ser humaninho como primeiro dente, primeiros passos, primeiras palavras..
uma verdadeira coletânea de aprendizados.

lembrei dela quando em Janeiro de 2020 decidi criar o meu Projeto Livro do Bebê. a idéia era aprender uma coisa nova por mês, algo que na essência não tivesse nenhuma ligação com minha carreira e trabalho já que invariavelmente era onde eu há anos colocava meus esforços.
e foi assim, sentada na canga aproveitando alguns dias de férias na praia, que fui jogando no bloco de notas do celular uma mistura de desejos antigos e novos e a lista foi sendo criada:
– degustação de vinho
– dança do ventre
– pão
– perna de pau
– canto

alerta de mensagem: uma amiga a 444km de distância indicando um curso “Recebi isso e lembrei de você!”, ela dizia. poucas vezes na vida eu fui tão aplicada em um dever de casa, e foi assim que eu determinei a primeira aula do ano e as idéias viraram fatos.
– Janeiro – dança afro
– Fevereiro – tamborim (Carnaval tava ali né?)
– Março – leitura de tarot

e bom, cá estamos. Dezembro de 2020, uma lista de planos não realizados, uma lista de nomes que tiveram seus planos interrompidos. dizer que este ano foi um ano de aprendizados é chover no molhado e minimizar 180 mil estórias, até agora.
mas talvez na minha lista estivesse faltando “aprender a aprender”.
aprender a respeitar meus medos, minhas lágrimas e meus sorrisos mesmo em meio ao caos.
aprender a respeitar o tempo do outro, as escolhas do outro e cada uma de suas palavras e seus silêncios.

aprender o olhar o agora, já que como dizia o poeta, “Breve é o dia. Breve é a vida.”

querida.